domingo, 16 de julho de 2023

Reminiscências - Por H. P. Zimmermann

Moinho em  Fränkische Freilandmuseum Bad Windsheim na cidade de Bad Windsheim, em Unterfranken - Alemanha.


Um dos textos parte da produção literária publicada na Revista Blumenau em Cadernos, pela Fundação Cultural de Blumenau, em 1970, que ilustra parte da maneira de viver da sociedade regional no início do século XX.

O autor

Henrique P. Zimmermann foi  o ex-presidente do Instituto Cultural Brasil-Alemanha de Curitiba. Formado em contabilidade com extensão universitária em História e Sociologia. Atuava nas áreas da educação e jurídicas e simultaneamente, escrevia artigos e os publicava em diversos periódicos, até mesmo na Revista Blumenau em Cadernos de Blumenau, abrangendo a áreas da educação, cultura, formação científica, história, sociologia e política. Sua produção aconteceu no recorte de tempo histórico  entre o final do século XIX e início do século XX.

Reminiscências
Por Henrique P. Zimmermann

"Sem dúvida alguma, uma das mais agradáveis recordações do tempo de minha juventude, é  a das minhas frequentes visitas aos engenhos de açúcar de meu avô paterno e aos de meus tios, casados com irmãs de minha mãe. Já descrevi, em artigos anteriores, a importância dos engenhos, para a economia de meu município natal. Exerciam eles, também, grande influência na sociedade rural, moldando-lhe o estilo de vida e os métodos de trabalho. Eram, nada mais nem menos, do que os estabilizadores da sociedade rural e a base financeira para uma larga camada da população do município, que criou lá um estilo próprio de vida que assumiu, no correr dos anos, aspectos de tradição. A tradição só desapareceu, quando, por motivos alheios à vontade dos donos de engenhos, estes não mais podiam continuar a trabalhar em bases econômicas face à concorrência que lhes faziam as grandes usinas
A semelhança dos moinhos de vento do Norte europeu, das velhas rodas d'água que moviam os mais diferentes dispositivos mecânicos, também os engenhos de açúcar estavam cercados de certo ar de romantismo, só não perceptível aqueles, que já não mais possuíam o dom de sonhar, o gosto pela poesia das coisas que os cercavam.
O engenho de meu avô, quando não se trabalhava nele era o lugar ideal para os nossos folguedos e jogos infantis, nele podia-se brincar de esconder, como em nenhum outro lugar. Virar a moenda de cana, era excelente exercício físico e era grande a algazarra, quando algum companheiro não conseguia dar mais de umas dez voltas à moenda, aliás bastante pesada para guris de oito ou dez anos. Atrás do engenho, de uma bica, corria água cristalina e fria, captada na encosta de um morro próximo, que enchia grande tanque de madeira. Ali, o brinquedo ideal era armar pequenas rodas de água ou fazer flutuar, barquinhos de madeiras ou de cuias, na água do tanque. Tudo isto divertia-nos muito e quase sempre ficávamos com as roupas molhadas, o que constituía problemas de certa gravidade ao chegar de volta em casa. Grupos de dez ou mais meninos entregavam-se a estes brinquedos, e quer me parecer, que se divertiam mais em construir suas rodas d'água e vê-las movimentar-se, do que se divertem os meninos de hoje com a infinidade de brinquedos que a indústria moderna lhes oferece, mesmo em se tratando de tanques de guerra, carros de todas espécies, armas ou ferrovias automáticas.
Normalmente, à determinada hora da tarde, vovó nos chamava para tornar café. Era espantosa a velocidade com que desapareciam dos pratos, as fatias de broa de milho ou bijus de farinha de mandioca , tudo devorado pela gurizada com bom melado.
Quando o engenho se achava em ação, era lá que se bebia caldo-de-cana, comia-se a dourada espuma de açúcar, que formava-se quando o açúcar fervente era transferido do grande tacho para os cochos de repouso. O alambique não parava de destilar aguardente. E, ali, então apareciam certos tipos curiosos, que pediam uma prova da "branquinha" e a bebiam em canequinhas feitas de bambu. Uma prova seguia a outra, até que, cambaleantes e "cercando frangos" deixavam o engenho. Havia os que depois de algumas provas, ficavam valentes e desafiavam todo mundo para uma briga. Umas chibatadas desferidas no lombo deles com uma cana murcha, fazia-os sair correndo. Outros havia, que cantavam, davam gargalhadas histéricas e contavam piadas, até que, saturado de tanto "divertimento", o alambiqueiro os fazia correr dali. Diga-se, porém, a bem da verdade e das boas tradições de vida e costumes, que estes casos não eram muito frequentes. 
O resíduo do caldo-de-cana fermentado e destilado, depois de esfriado era misturado com farinha de mandioca e servia de ração para os porcos. Embora a parcela de álcool ainda contido nestes resíduos, chamados "vinhão" era muito diminuta, frequentemente via-se porcos ficarem tontos, dar voltas ou rodopiarem como piões, depois deitarem e caírem em profundo sono. 
Nós, os meninos, víamos tudo isto e tudo nos causava alegria. A melhor coisa, porém, eram os momentos quando o sol estava para desaparecer a trás dos morros e vovô sentava-se conosco num banco frente à casa de morada e, descascando cana para nós, que mastigávamos e as chupávamos prazerosamente, nos contava coisas dos tempos idos, dos homens que, vindos de longe, ali se estabeleceram. Falava das densas matas que cobriam a terra quando ali chegaram, dos animais ferozes que as habitavam, dos animais que lhes caçavam para suprir a casa com carne, das chusmas de papagaios e periquitos que voavam até perto do rancho e faziam tremenda algazarra, dos micos e dos bugios que vinham roubar espigas de milho na roça, das boas pescarias que faziam no ribeirão que agora atravessa a pastagem, das perigosas jararacas e cobras corais, que gostavam de atacar nas tardes quentes, quem perto delas passasse, das grandes inundações ocorridas, que faziam os animais do mato, das várzeas, procurarem salvar-se em lugares mais elevados ou ficar na copa de uma árvore toda cercada de água ... e de muitas outras histórias semelhantes. 
Tempos bons, tempos felizes, tempos que não voltam mais. Passou tudo, só ficou uma coisa que nunca passa: a saudade. Existem hoje muitos homens, que riem daqueles que falam em saudades.
Pobres criaturas estas, com espíritos ressequidos pelo materialismo e cujas vidas são áridas, porque nelas não mais brotam os frutos da poesia e do romantismo. Já não mais sabem eles o que é saudade, este sentimento que muitas vezes dói, mas que é tão bom, tão gostoso e que nos ajuda olvidar tantas coisas más que muitas vezes procuram amargar nossa vida. Saudade, mesmo quando dói, é fruto saboroso de uma existência bem vivida que não teme olhar para trás, que revive fatos e revive o passado sempre  de novo." 



Eu sou Angelina Wittmann, Arquiteta e Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade.
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