Escultura em madeira, a "Fuga para o Egito", tamanho natural, locada no saguão da Catedral Metropolitana de Florianópolis. Obra do renomado escultor tirolês Ferdinand Demetz. |
Um questionamento curioso foi-nos feito a partir de uma mensagem via redes sociais, pelo pesquisador José Carlos Sá. Apesar de nosso pouco tempo indisponível, fomos buscar as respostas movidos pela curiosidade, uma vez que já havíamos visitado o cenário do objeto estudado, a Catedral Metropolitana de Florianópolis. O objeto de estudo é a escultura em madeira, "Fuga para o Egito", exposta na catedral, em tamanho natural.
José Carlos Sá escreveu:
Bom dia, professora. Fiz contato consigo no passado, quando comentei o livro sobre a Ferrovia no Vale do Itajaí. Estou procurando informações sobre o artista plástico tirolês Demetz Gröden, a quem é atribuída a autoria da escultura "Fuga para o Egito", existente na Catedral de Florianópolis. Nas suas pesquisas, a senhora já encontrou alguma coisa sobre ele? Tenho pesquisado, mas as informações se limitam a uma frase que está na legenda da obra: "Demetz Gröden" - A Catedral recebeu as imagens em 30 de maio de 1902.As imagens da Fuga para o Egito (Sagrada Família) foram entalhadas à mão em dois blocos de cedro (madeira), em tamanho natural". Essa informação é repetida com uma ou outra alteração no texto, mas basicamente a mesma coisa.
Obrigado pela atenção. José Carlos Sá
Há algumas questões e serem analisadas:
A Catedral
Primitivamente a região de Nossa Senhora do Desterro era habitada pelos nativos da tribo guarani. Quando o Brasil foi "descoberto", a ilha de Jurerê-Mirim, depois dos Patos, mais tarde, Santa Catarina – denominação dada por Sebastião Caboto, em 1526 – estava povoada pelos tupis-guaranis. Nessa época já havia sido efetuado a grande migração tupi pela zona litorânea.
O cruzamento do tupi-guarani com o português (branco)que chegou (e não era brasileiro - imigrante como tantos outras imigrações feitas posteriormente e as quais sofreram descriminação pelos descendentes desses) gerou o índio carijó, cujo significado é “o que vem do branco”. Daí serem os índios catarinenses denominados, geralmente, por carijós. Isso aconteceu muito antes dos imigrantes alemães colonizarem o Vale do Itajaí, atraídos através de propagandas de convencimento e desconhecendo que a terra era habitada pelo povo nativo.
O cruzamento do tupi-guarani com o português (branco)que chegou (e não era brasileiro - imigrante como tantos outras imigrações feitas posteriormente e as quais sofreram descriminação pelos descendentes desses) gerou o índio carijó, cujo significado é “o que vem do branco”. Daí serem os índios catarinenses denominados, geralmente, por carijós. Isso aconteceu muito antes dos imigrantes alemães colonizarem o Vale do Itajaí, atraídos através de propagandas de convencimento e desconhecendo que a terra era habitada pelo povo nativo.
Naquela época, no litoral catarinense, primeira região historicamente povoada, era sabido pelos pioneiros, que ao construir uma capela, fundar um curato, desenvolvia-se uma povoação em torno dessa capela e curato. Esse não foi o único exemplo da origem histórica de cidades de Santa Catarina. Um exemplo semelhante, a Desterro, foi o surgimento da cidade de Itajaí, na foz do rio Itajaí Açu.
A praça da Igreja Matriz, foi sempre o centro de Nossa senhora do Desterro, características das cidades coloniais portuguesas e em torno dela cresceu a cidade, quase de maneira radial e equidistantes, independentemente dos obstáculos físicos. Surgiu a estrutura de caminhos e e estas com o mar, e meios de transportes adequados. O local era conhecido como o Largo da Matriz, característico ponto de encontro, herança da ágora grega.
A primeira igreja de Nossa Senhora do Desterro foi construída em 1673, sendo a padroeira, Nossa Senhora do Desterro. A paróquia foi criada em 5 de março de 1712, quando Desterro foi elevada a freguesia. Em 25 de setembro de 1747, José da Silva Paes, escreveu ao Rei de Portugal, pedindo licença para a construção de uma nova Igreja Matriz, que foi concedida. A construção iniciou em 1753 e foi inaugurada em 1773. Em 1908, a igreja Matriz foi elevada à categoria de Catedral.
Em 1922, durante as comemorações do centenário da Independência do Brasil, em 1922, aconteceu uma grande obra de manutenção na igreja, quando a área foi ampliada, as torres foram modificadas e foram colocados alpendres com linguagem neoclássica na parte frontal. No alpendre central permaneceu a portada de cantaria da primeira construção.
No seu interior, no lado direito, está a escultura em madeira: “Fuga para o Egito”, colocada na catedral em 30 de maio de 1902.
O nome do Escultor mencionado - "Demetz Gröden"
Este nome composto mencionado pelo pesquisador não reporta ao nome de uma pessoa, mas sim, ao nome de uma família de um determinado lugar. Demetz é o nome da família de Ferdinand - artista que fez a obra em madeira e este era natural Gröden, também conhecido como Val Gardena - localizada no Tirol.
Localização de Gröden ou Val Gardena. |
Gröden ou Val Gardena. |
Localização de Gröden ou Val Gardena - St. Ulrich. Google Earth. |
Em 1700 já existiam mais de 50 escultores em madeira, e em meados do século XVIII já eram mais de 300. Nesta época, a arte da talha em madeira de Gröden, ou, em Val Gardena estava distribuída por toda a Europa, especialmente nos países românicos e católicos, através de um comércio itinerante.
A família Vinazer é uma das dinastias artísticas mais importantes, cujos membros trabalharam particularmente como medalhistas na Boêmia e em Viena e como escultores, em Toledo. Martin Vinazer estudou em Veneza e Roma durante oito anos.
O nativo de Gröden, ou, em Val Gardena, Marcion Malsiner, trabalhou em Veneza entre 1691 e 1714 como escultor em sua própria oficina, como Marchiò Molziner.
Franz Runggaldier-Nevaves criou o crucifixo barroco e a representação do Corpo de Cristo na igreja paroquial de St. Ulrich, em Gröden, ou, em Val Gardena.
Os escultores conhecidos “Fronc”, provavelmente tiveram contato com a obra e o atelier de Franz Grünewald-Nudrei em Gröden ou Val Gardena, nascido em 1667. Franz Grünewald frequentou a Academia de Viena por durante seis anos. Deixou várias obras escultóricas, incluindo crucifixos, que ainda existem em algumas casas particulares de Gröden ou Val Gardena.
Johann Dominik Mahlknecht, também nascido em Gröden ou Val Gardena, mandou fazer uma Madonna e quatro evangelistas em gesso para a igreja paroquial de St. Ulrich em Gröden ou Val Gardena, como cópias de suas obras. Uma cópia de bronze do Terpsícore de Mahlknecht foi colocada em uma fonte na praça da igreja em Gröden ou Val Gardena, e no Ferdinandeum, em Innsbruck.
Na virada dos séculos XIX e XX, em função da fama da arte escultural e dos muitos ateliers existentes foram exportadas esculturas para todo o mundo. Até mesmo para Florianópolis. Além dos escultores, numerosos pintores, douradores também trabalharam em muitos ateliers em Gröden ou Val Gardena.
Este perfil do local, nas montanhas e o número relativamente elevado de artistas acadêmicos, permitiu o boom qualitativo de escultura em madeira de Gröden ou Val Gardena, no final do século XIX.
O ponto de referência comum da Academia de Munique permite uma visão e uma reflexão mais detalhada da história e do desenvolvimento estilístico da escultura da região. Há poucas pesquisas sobre, até o momento presente.
Existe uma lista de acadêmicos e sua data de ingresso, local de origem, situação dos pais, idade, disciplina e número de matrícula na Academia da Munique onde o escultora da obra da Catedral de Florianópolis foi professor:
- Johann Burgauner, registro em 4 de abril de 1845 de Kastelreuth, seu pai era mestre padeiro, 30 anos, disciplina de pintura. Recebeu número de matrícula em 15 de novembro de 1845.
- Joseph Anton Mahlknecht, entrada em 16 de novembro de 1850 de Überwasser-St. Ulrich, residente em Gröden ou Val Gardena, no Tirol. O pai era proprietário de terras. Tinha 23 anos. Inscrição: pintura.
- Franz Prinoth, entrada em 19 de novembro de 1850.
- Vincenz Runggaldier, entrada em 18 de maio de 1861, de Svöden. O pai era comerciante, 23 anos. Aula de antiguidades, matrícula nº. 1774.
- Franz Demetz, entrada em 30 de outubro de 1862, 26 anos, aula de escultura, número de matrícula. 1880.
Ferdinand Demetz, entrada em e 16 de dezembro de 1866. O pai era escultor, 24 anos, escola de escultura, matrícula nº. 2295.
- Johann Moroder, registro em 4 de novembro de 1870, 26 anos. O pai era proprietário de terras. Número de registro, 2613
- Leopold Moroder, registro em 3 de março de 1876. O pai era proprietário de terras, 25 anos. Número de registro, 03263.
- Emil Terschak, entrada em 24 de abril de 1876. O pai era compositor, 18 anos, aula de antiguidades. Matrícula nº. 3272.
- Josef Moroder-Lusenberg, entrada em 21 de junho de 1876. O pai era proprietário, 30 anos. Número de registro, 3303.
- Franz Insam, entrada em 23 de outubro de 1878, de Skt. Christina no Tirol. O pai era entalhador, 25 anos, escola de escultura.
- Hans Perathoner, entrada em 18 de outubro de 1897, 24 anos, escola de escultura v. Ruemann. Matrícula 1742.
- Valentin Gallmetzer (* 1870; † 1958).
- Robert Vittur, entrada em 30 de outubro de 1907, de Ortisei, decorador da igreja, padre, 19 anos. Matrícula 3392.
- Guido Balsamo Stella, entrada em 18 de outubro de 1909, de Turim. O pai era empresário, 27 anos, escola de pintura v. Habermann. Matrícula 3751.
- Wilhelm Obletter, entrada em 3 de maio de 1912, de Munique, 21 anos, escola de desenho B. Gundahl. Matrícula 5069.
Em resumo, no século XIX, Gröden ou Val Gardena, já era um dos maiores centros de escultura em madeira do mundo. Numerosos entalhadores deste vale frequentaram as Academias de Munique e Viena e Ferdinand Demetz foi um escultor com formação acadêmica e mestre do ofício. Retornou à sua terra natal e transmitiu seus conhecimentos em uma das escolas de artes com grandes ateliers. Estas escolas foram reconhecidas pelo governo imperial de Viena.
Ferdinand Demetz
Ferdinand Demetz, o verdadeiro escultor da obra “a Fuga para o Egito” da Catedral Metropolitana de Florianópolis, nasceu 7 de outubro de 1842 em Gröden ou Val Gardena e faleceu em 4 de março de 1902. Faleceu antes da obra chegar à igreja de Florianópolis, que poderia ter sido seu último trabalho.
Seu pai foi o escultor Dominikus Demetz e sua mãe, Marianna Demmetz. Ele iniciou seus estudos e práticas de escultura, como aprendiz de escultor no atelier de seu pai antes de frequentar o Mayer'sche Hofkunstanstalt sob a direção de Joseph Knabl em Munique e a Academia de Belas Artes de Viena . Ele também tocava Flugelhorn. Formou-se em Viena com uma escultura de Deus Pai, pela qual foi condecorado com a Cruz de Ouro com Coroa. Em 16 de dezembro de 1866 ingressou na Royal Academy of Art de Munique.
Documento de nascimento de Ferdinand Demetz. Fonte: Áustria, registros da Igreja Católica, 1565-2007. |
Em 1873 fundou a “Fachschule in St. Ulrich” com o apoio do governo em Viena. Dirigiu cinco oficinas com 30 a 40 funcionários e 12 a 14 aprendizes para produzir móveis sagrados para igrejas.
Entre outros, estiveram em seu atelier, os escultores Franz Tavella, Jakob Crepaz-Maidl , Filip Noflaner, Vigil Dorigo, Anton Pitscheider-Menza , Josef (Sepl) Pitscheider-Menza, Josef Parschalk e Valentino Sommavilla.
Depois de fundar a escola de arte em Bolzano, em 1883, com o término dos fundos estatais, Ferdinand Demetz dirigiu a escola técnica em Gröden ou Val Gardena com seus próprios fundos. Em 1886 foi eleito líder comunitário local.
Por volta de 1900, Ferdinand mandou construir o primeiro cano de água de alta pressão em Gröden ou Val Gardena e em 1890, a primeira serraria elétrica e plaina elétrica de madeira na região.
Escultores que passaram em suas escolas: Franz Tavella, Jakob Crepaz-Maidl, Filip Noflaner, Vigil Dorigo, Anton Pitscheider-Menza, Josef (Sepl) Pitscheider-Menza, Josef Parschalk e Valentino Sommavilla.
Ferdinand Demetz se casou, com 46 anos de idade, com Amalia Maria Runggaldier de Saltzburg (filha de Franz Runggaldierem e Anna Främelwerger), em 10 de abril de 1888, em Bolzano, Bolzano, Trentino-Alto, atual Itália.
Documento de nascimento de Amalia Maria Runggaldier. Fonte: Áustria, registros da Igreja Católica, 1565-2007.Número da pasta digital 007961283 - Número da imagem:771 |
Capela-mor da Igreja de San Durich - escultura de 1870 de Ferdinand Demetz. Fotografia de Wolfgang Moroder. |
Igreja Paroquial de São José com o Menino Jesus de Santo Ulrich, Gröden ou Val Gardena, de Ferdinand Demetz. Fonte: Wikimedia. |
Ferdinand Demetz, nome de uma rua de Palhoça, na Grande Florianópolis. Google Earth. |
Concluímos que o escultor da obra do final do século XIX e início do século XX foi feita pelo renomado escultor Ferdinand Demetz, que vivia na região de Gröden ou Val Gardena, um acadêmico, que foi mestre de inúmeros escultores de renome mundial. Não conseguimos encontrar registros se Ferdinand Demetz produziu a peça no seu atelier em Tirol ou, em Santa Catarina, mas concluímos algo, através das evidências.
Cedro. |
Também, refletindo um pouco, ao observarmos a madeira usada na obra de madeira da catedral, o cedro, poderíamos afirmar que a obra foi esculpida no Brasil. Poderia Ferdinand, com 59 anos ter ficado doente em terra tropical?
O cedro, Cedrela fissilis, é uma espécie nativa da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela. Madeira que poderia ser encontrada em toda a América Central e do Sul, mas não poderia ter sido encontrada nas montanhas do Tirol, terra dos pinheiros, madeira usada nas esculturas feitas por lá.
Imagens da Catedral Metropolitana de Florianópolis.
Foto feita do quintal do Palácio Rosado, atual Museu Histórico de Santa Catarina. |
Órgão da Catedral da Catedral Metropolitana. |
Local, na catedral, onde está a obra de Ferdinand Demetz, a "Fuga para o Egito", tamanho natural. |
Escultura em madeira, a "Fuga para o Egito", tamanho natural, locada no saguão da Catedral Metropolitana de Florianópolis. Obra do renomado escultor tirolês Ferdinand Demetz. |
Rio dos Cedros SC
Após publicada esta breve pesquisa, recebemos "ecos" do município de Rio do Oeste, do professor Marcos Pisetta que nos informou sobre obras da região de Val Gardena, ou Gröden, na igreja daquela cidade, desprovida de maiores informações. A data é da década de 1950. Portanto, a região do Tirol continuou a fornecer esculturas de madeira para Santa Catarina.
Bom dia professora, tudo bem? Acabo de ler seu artigo no blog sobre a escultura "A fuga para o Egito". Na matriz de Rio do Oeste a imagem de "Nossa Senhora Consolata" também é de Val Gardena, mas este é o único registro. Há alguma maneira de pesquisar para saber qual artista ou oficina a fez? Marcos Pisetta, Rio do Oeste.
Um registro para a História
Sou Angelina Wittmann, Arquiteta e Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade.
Contatos:
@angewittmann (Instagram)
@AngelWittmann (X)
Referências
- Arthur Haberlandt: Die Holzschnitzerei im Grödener Tale, Sonderabdruck aus der Vierteljahrsschrift Werke der Volkskunst, Band II, Heft 1. Kunst- und Verlagsanstalt J. Löwy, Wien 1914.
- Erich Egg, Herlinde Menardi: Das Tiroler Krippenbuch. Die Krippe von den Anfängen bis zur Gegenwart. 2. Auflage. Tyrolia, Innsbruck 2004, ISBN 3-7022-2604-4.
- Hl Josef mit Jesuskind Pfarrkirche St. Ulrich Gröden Ferdinand Demetz.JPG. Wikimedia Cammons. disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hl_Josef_mit_Jesuskind_Pfarrkirche_St._Ulrich_Gr%C3%B6den_Ferdinand_Demetz.JPG?uselang=pt-br. Acesso em: 24 de outubro de 2024.
- Gruppe Bucher. St. Ulrich in Gröden: Luis Trenker, Giorgio Moroder, Josef Moroder- Lusenberg, Museum Gröden, Egon Rusina, Villa Venezia, Ludwig Moroder. Books LLC, Wiki Series (29 agosto 2011), 56 páginas. ISBN-10 : 1158848919. ISBN-13 : 978-1158848911.
- Othmar Moroder: Das Grödner Kunsthandwerk. Eigenverlag, St. Ulrich in Gröden, Druck Fotolito Longo 1994.
- Paulina Moroder, Eugen Trapp: L lëur d’auteresc te Gherdëina, 1700–1940. Calënder de Gherdëina 2001, Union di Ladins de Gherdëina, St. Ulrich 2000, S. 72–77 (Ladinisch).
Muito obrigado, professora por elucidar essa minha curiosidade. Parabéns pelo trabalho que a senhora realiza. José Carlos Sá
ResponderExcluirA curiosidade nos fez trabalhar à noite e ficamos satisfeitos com as respostas encontradas. Muito obrigada por inquirir. Colocarmos seu nome no texto, como registro para a história. Abraços.
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