Deutsche Welle
Decisão de mobilizar militares em Brasília adiciona elemento de controvérsia à crise, gera enxurrada de críticas e desconforto inclusive na base aliada. Ao voltar atrás, governo escancara curso cada vez mais errático.
A controvérsia envolvendo a convocação de militares só alimentou a sensação de isolamento do governo Temer |
A decisão do governo de convocar as Forças Armadas para conter os protestos que na quarta-feira (24/05) tomaram a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, adicionou mais um elemento de controvérsia à crise política. Menos de 24 horas depois, diante de uma enxurrada de críticas e pressão inclusive da sua base aliada, Michel Temer revogou o decreto, escancarando mais uma vez o comportamento errático que vem caracterizando o Planalto nos últimos dias.
Temer já vem sofrendo só nos últimos dias com a perda de auxiliares próximos – quatro de seus cinco assessores especiais já deixaram o Planalto –; críticas de colegas de partido que pedem a sua saída; articulação de caciques que já parecem discutir nomes alternativos para ocupar a Presidência; a permanente reprovação da população; um inquérito no Supremo e dificuldades em fazer sua agenda de reformas voltar a andar no Congresso. Nesse contexto, a controvérsia envolvendo a convocação de militares só alimentou a sensação de isolamento do governo.
Para autorizar o uso dos militares, o governo havia recorrido ao instrumento de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que nos últimos anos foi amplamente usado em operações de segurança no Brasil, como as Olimpíadas de 2014 ou a crise dos presídios no início de 2017.
No entanto, a GLO praticamente nunca havia sido usada para conter protestos de rua. O decreto de Temer tinha originalmente validade até 31 de maio, uma semana no total, justamente o período em que o governo se prepara para retomar a votação de uma série de reformas impopulares em uma demonstração de que a administração não está paralisada. O fato de um prazo tão longo ter sido estabelecido usando como justificativa uma manifestação específica, que ocorreu durante uma tarde, também gerou controvérsia.
O próprio acionamento da GLO na quarta-feira já havia relevado confusão e falta de comunicação no topo do governo durante a tarde de ontem, quando manifestantes começaram a depredar ministérios. Inicialmente, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, disse que os militares haviam sido acionados à pedido do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Poucos depois, no entanto, Maia, um aliado de Temer, afirmou que não havia pedido a presença de militares, mas de membros da Força Nacional, e exigiu uma retratação do Planalto. Ele também criticou o prazo previsto no decreto. "As manifestações estão ocorrendo hoje e apenas hoje. Decreto com validade até o dia 31 é um excesso sem dúvida nenhuma”, disse.
Horas depois, Jungmann admitiu que a decisão de convocar especificamente os militares foi do próprio Temer. O ministro disse então que as forcas armadas foram acionadas porque a Polícia Militar local não conseguiu controlar o vandalismo dos manifestantes. A convocação dos militares e o fato de o Planalto ter tentado responsabilizar Maia provocou críticas entre políticos da sua base aliada que já se voltaram contra o governo.
"Atribuir a responsabilidade ao presidente da Câmara é um horror. Se esse governo não se sustenta, não serão as Forças Armadas que vão sustentar esse governo", disse o senador Renan Calheiros (PMDB-AL). Já o senador Otto Alencar (PSD-BA) afirmou que "esse decreto vem em uma hora totalmente inapropriada de alguém que perdeu completamente o sentido de governar".
A garantia da lei e da ordem
Criada em 1999, regulamentada em 2001 e detalhada em 2014, a GLO é acionada exclusivamente por ordem expressa da Presidência da República. As ações de GLO são previstas em casos em que existe, de acordo com o Ministério da Defesa, "o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem".
Com base no texto, é comum que governadores peçam a presença do Exército quando avaliarem que suas polícias não estão mais em condições de garantir a segurança. Em 2016, militares patrulharam as ruas do Rio de Janeiro durante as eleições. O governador do estado, Luiz Fernando Pezão (PMDB), chegou a pedir a Jungmann que os militares permanecessem reforçando a segurança depois do pleito, mas o próprio ministro disse à época que era preciso evitar "banalizar a GLO".
Desta vez, no entanto, o governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg (PSB), disse que não foi consultado sobre o uso dos militares em seu estado antes do decreto de Temer. Ele classificou a iniciativa de "medida extremada adotada sem conhecimento prévio e sem anuência do governo de Brasília e sem respeitar os requisitos da lei”.
"Para surpresa do governo de Brasília, a Presidência decidiu recorrer ao uso das Forças Armadas, medida extrema adotada sem conhecimento prévio e nem anuência do governo de Brasília", disse Rollemberg.
Ele também negou que a polícia local tivesse perdido a capacidade para conter a manifestação, lembrando que o Distrito Federal foi palco de 151 manifestações nos últimos dois anos. "Em todas as ocasiões, a PM agiu com eficácia e eficiência, demonstrando estar plenamente apta ao regular desempenho de sua missão constitucional."
Eloísa Machado, professora de direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, apontou que, considerando todos os elementos de quarta-feira, a medida de Temer foi "autoritária".
"Como todos os protestos desde 2013 eventualmente tem (destruição e violência)... isso não caracteriza falência total da polícia, nem que todo o protesto tenha sido assim", disse. "Tratava-se de um protesto legítimo, com atos que podem ser crimes, que deveriam (e foram) apurados e reprimidos pela polícia. Temer cala protesto contra seu governo, usando Exército. (...) Medida autoritária, com claros sinais de abuso de poder", completou, apontando ainda que, com o decreto, Temer cometeu, em tese, "crime de responsabilidade".
Já a ONG de direitos humanos Conectas disse que a convocação dos militares "remonta a tempos sombrios da História brasileira". "Repudiamos a tentativa do governofFederal em enxergar cidadãos brasileiros como ameaça que justificaria intervenções militares desta natureza", disse a ONG, lembrando ainda que militares são disciplinados e atendem a uma "lógica de guerra".
Histórico
O decreto original de Temer previa que 1.500 militares seriam responsáveis pela segurança da Esplanada. O Ministério da Defesa, no entanto, informou que os militares só fariam a segurança interna dos prédios, e não participariam de ações de repressão contra manifestantes concentrados nos gramados e áreas externas, deixando esse papel para a polícia local.
Mesmo essa informação que visava tranquilizar os críticos da medida gerou polêmica, já que militares já garantem regularmente a segurança de vários prédios públicos da Esplanada - como o Itamaraty e o Palácio do Planalto - sem necessidade da GLO.
Desde que a lei foi regulamentada em 2001, a GLO só foi usada uma vez em um contexto de protestos. Foi em outubro de 2013, ainda no primeiro governo Dilma Rousseff. Na ocasião, membros das Forças Armadas foram convocados para reforçar a segurança do Rio de Janeiro durante o leilão do campo de Libra, uma das áreas do pré-sal. Mas as Forças foram convocadas preventivamente e só quando o então governador do Estado, Sérgio Cabral, considerou que a polícia local não tinha condições de manter a ordem caso eventuais protestos registrassem violência e vandalismo.
Militares chegaram a atuar nos protestos que tomaram conta da Esplanada dos Ministérios em junho de 2013. Mas naquele caso, a GLO não foi acionada, e os militares protegeram prédios onde soldados já eram responsáveis anteriormente pela segurança, como o Palácio do Itamaraty. O acionamento dos militares para garantir a segurança em larga escala da Esplanada levou jornais a resgatarem de seus arquivos imagens dos turbulentos governos João Figueiredo (1979-1985) e José Sarney (1985-1990), quando grandes contingentes de soldados foram levados a Brasília para conter manifestações.
- Data 25.05.2017
- Autoria Jean-Philip Struck
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