"Muitos autores descrevem o Terno de Reis como uma manifestação cultural que,acordo com o lugar do Brasil, pode ter variadas denominações: Banda de Folia de Reis, Folia de Santo Reis, Reisado, Terno de Santo Reis, Música de Folia de Reis, Caixa de Folia de Reis, Bumba-meu-boi, Boi de Reis, Boi-Bumbá ou simplesmente Boi. (...)
De forma mais geral, o Terno de Reis como um tipo de representação que é animada por músicos do próprio ambiente das localidades, seguidos de um modesto número de outros brincantes, vestidos de roupas simples e enfeitadas de flores e fitas, portando chapéu de palha. Levam nas mãos imagens de santo e estandartes coloridos, tocando viola, violão, zabumba, às vezes, sanfona. Os reiseiros, ritmados por um extenso repertório musical, saem de casa em casa de festeiros à procura do Menino Jesus. Encontrarão o Menino Jesus no presépio ou na lapinha (como alguns costumam chamar) e, com isso, expressarão sua adoração a Deus. As apresentações do reisado iniciam com a cantoria na porta da casa do devoto; depois, diante da lapinha, cantam-se chulas, sambas e modas de viola; por fim, na marcha de saída, os foliões se despedem e vão para outra casa repetir o mesmo ritual. Terminado o ritual, o dono da casa lhes oferece bebida e comida em fartura. No variado cardápio, pode-se encontrar beiju, pipoca,milho cozido, rapadura, farofa. Na parte de bebidas, licor e, principalmente, a cachaça a mais popular das bebidas brasileiras." FRANÇA p 15 (2017)
O Terno de Reis é uma prática cultural presente quase em todo o território brasileiro com contribuições identitárias locais e também com uma boa dose de sincretismo religioso, cuja origem veio de Portugal e foi trazida pelos imigrantes portugueses que povoaram as muitas regiões do país continental e receberam modificações de outros povos presentes no Brasil, como africanos e indígenas.
Cidade de Portão - o Centro recebeu o Bumba Meu Boi de Dona Badinha, encerrando os festejos dos Ternos de Reis na cidade. Com cerca de 100 integrantes com idade entre 4 e 101 anos, é um dos mais antigos grupos culturais da cidade. Fonte: Nordeste.
A tradição do Terno de Reis, como mencionado, é praticada em diversos locais do Brasil, desde o século XVIII. É mais usual e frequente no nordeste, com aspectos regionais e também é conhecido de maneira resumida, como Reisado. É uma comemoração à viagem dos três Reis Magos que presentearam o menino Jesus Cristo. O dia de Reis, 6 de janeiro, data comemorativa da chegada dos Reis Magos à manjedoura onde estava o recém nascido Jesus, guiados pela estrela que anunciou seu nascimento. De acordo com o bíblia, os Reis Magos partiram do oriente em 25 de dezembro após receberem a notícia de que havia nascido o Rei dos Judeus. Magos, na época do nascimento, era uma denominação dada aos sábios ou eruditos das nações orientais. Mais tarde, o cronista conhecido como Beda, que viveu entre 673 e 735 d.C, batizou os três Reis Magos de Gaspar,Melchior (ou Belchior) e Baltazar.
Os Três Reis Magos - Zanobi Strozzi - Pintor italiano (1412-1468). Fonte: De Arte Em Arte
De acordo com GONÇALVES, ao longo do tempo histórico, os povos foram atribuindo aos visitantes do Messias significados diferentes, como a cor da pele. Na crença, os magos eram, cada um, negro (africano), branco (europeu) e moreno (oriental, persa ou assírio). O significado das cores eram as raças conhecidas da humanidade até então, que se uniram em homenagem ao menino que havia nascido.
Por isso, o "Terno" de Reis é feito por três pessoas e reporta aos Reis Magos.
Vista do Terno de Reis em uma Casa - Chapada.
No Brasil, a tradição do Terno de Reis está presente quase que totalmente representada no interior. Geralmente, a festa é comemorada com trios de músicos, quase sempre munidos de instrumentos caseiros de percussão e melodia, como pífanos, tambores e reco-recos. Os trios percorrem casas das ruas das comunidades. Ao contrário da visita original - Visita do Reis Magos que levaram presentes ao menino Jesus, os trios é que são presenteados pelos moradores das casas visitadas.
No momento da chegada, o Terno de Reis entoa a canção que pede permissão ao dono da casa para entrar e anunciar o nascimento do menino Jesus. Dentro da residência, são presenteados com comidas, bebidas e até mesmo dinheiro, para a manutenção do grupo e da tradição. Ao final da visita, mais um canto de agradecimento ao senhorio o acolhimento ao longo da estadia. A casa visitada se sente "abençoada" com a visita. Somente após as visitas do Terno de Reis é que se pode guardar a decoração natalina, para o próximo ano, geralmente o presépio - cultura portuguesa.
Terno de Reis em Guanambi.
Tradicionalmente, em muitos lugares e regiões do Brasil, os grupos de Terno de Reis realizam visitas às casas de familiares e amigos entre os dias 20 de dezembro à 6 de janeiro, dia de Reis. Nas casas visitadas, os cancioneiros seguem uma ordem de apresentação: chegada (o terno canta do lado de fora da residência, pedindo para que o dono da casa abra a porta), entrada (a saudação é realizada aos donos da casa), louvação (versos celebram o nascimento de Jesus), versos sobre a estrela-guia e a visita dos reis, agradecimentos (componentes agradecem a acolhida) e a despedida.
A jornada que os Ternos de Reis fazem, de casa em casa, durante a festa de Reis realizada entre as vésperas de Natal até o dia 6 de janeiro, é resquício - como quase todas as festas cristãs. Tem origem nas brincadeiras de carnaval, juntamente com o aspecto religioso ilustrando a trajetória dos três Reis Magos numa das passagens bíblicas do Novo Testamento:
Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, e perguntaram: Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Nós vimos a sua estrela no Oriente, e viemos para prestar homenagem(Evangelho de Mateus, 2, 1).
O Magos descritos presentearam o menino Jesus com ouro, incenso e mirra, como símbolo, respectivamente, de realeza, divindade e humanidade. Ao longo da história, entretanto, as referências atribuídas aos Magos do Oriente mudaram significativamente. No século II, começaram a surgir as primeiras imagens esculpidas ou pintadas dos Reis. A partir de então, o imaginário do devoto aumentou. Desde a Idade Média foram acrescentados jogos, danças bailes, desfiles e espetáculos nas celebrações populares efetuadas no período entre a véspera de Natal e o dia de Reis. Também adicionaram a esses festejos, os folguedos ligados ao carnaval, onde se comemoravam o antigo e o novo Natal numa dinâmica que celebra passado, presente e futuro. Na Europa Medieval, cortejos de pessoas que saíam cantando e dançando pelas ruas de Portugal eram conhecidos como “Janeiras”, “Autos Pastoris” e “Cheganças”. Em Portugal, há registros das "Janeiras" em meados do século XIV, na região de Beiras, Minho, Estremadura e Douro. Um grupo festivo saía em visitas às casas, cantando e tocando em louvor ao Menino-Deus. Como retribuição, estas pessoas recebiam bebidas, comidas entre outros agrados.
“Janeiras” em Porto. Interessante - contam com o maior número de mulheres, como membros - Fonte: Nit
Sobre essas festas populares, Moraes Filho observa:
No meio dessas cenas pitorescas, desses dramas infantis, a poesia imitativa tocava ao seu apogeu, por isso que a grande nova emprestava no lirismo a voz aos animais, que expandiam as suas alegrias, pelo nascimento do Deus- Menino. Em seus louvores, o coro era uníssono, os tocadores de cítara partiam nos arpejos das cordas vibrantes, e os poetas entregavam-se ao fervor piedoso de suas inocentes inspirações. Mais tarde os bretões adotaram esses usos, que se generalizaram pela Europa, variando na forma,mas conservando o fundo da tradição (FRANÇA).
No Brasil
Estes hábitos e costumes em terras portuguesas, praticados por lá e repassados de uma geração para outra, chegou ao Brasil com os primeiros imigrantes daquele país - os portugueses. Na Bahia, onde estava a primeira capital brasileira - Salvador - as práticas sofreram contribuições de práticas religiosas e culturais dos indígenas e dos africanos - dentro do Terno de Reis ou “Ranchos de Reis”, como era conhecida o festejo. No século XIX, as práticas em torno do Terno de Reis são levadas para o Rio de Janeiro, coincidentemente a segunda capital do país e da lá para todo o território nacional, mais praticado nas áreas rurais.
Resumidamente, o Terno de Reis, em todo o Brasil, consiste em costumes legados pelos portugueses, primeiros imigrantes que chegaram ao país e estes sofreram modificações e se reconfiguram em cada uma das regiões do grande território do país, em virtude da miscigenação cultural local. A antropologia pode explicar com clareza as causas.
Permaneceu de maneira predominante nas práticas originais dos portugueses: a devoção às personalidades sacras, aos mártires, as letras das músicas e instrumentos de cordas - violas, cavaquinho, bandolim. As contribuições indígenas: a participação no momento da ladainha, a utilização dos instrumentos de sopro. E as contribuições africanas: a presença da percussão, dos tambores, zabumbas, caixas e algumas coreografias, que se assemelham em muito às do candomblé.
Essa movimentação de miscigenação cultural teve início nos primeiros séculos de colonização no Brasil, quando o catolicismo assumiu um perfil de obrigatoriedade, tornando-se justificativa de integração social na Colônia Portuguesa. Através das paróquias, conventos e irmandades, a Igreja Católica constituía instituições religiosas, das quais a sociedade devia obediência religiosa e civil, situação que permanente até a Proclamação da República..
(...)os representantes do Santo Ofício no Brasil puderam patrocinar um clima de medo nas ações repressivas, nos confiscos e deportações. Diante desse quadro, o brasileiro agiu de forma inteligente ao criar uma espécie de catolicismo ostensivo, principalmente nos locais públicos, que buscava invocações ortodoxas em nome de Deus, de Nossa Senhora e demais santos. O brasileiro incorporava, assim, o espírito do “católico fervoroso”. Tratava-se de uma postura sempre evidente que, por um lado, garantia status social, e por outro, o eximia de quaisquer suspeitas profanas ou heréticas. O “ser católico a todo custo” contribuiu para originar um formalismo típico do catolicismo brasileiro, qual seja, os sincretismos. Como pertencentes aos sincretismos, Eduardo Hoornaert (1974) destaca três realizações concretas do cristianismo dentro da cultura brasileira: o catolicismo guerreiro, patriarcal e popular. Aos nossos estudos da festa de Reis, interessa entender o catolicismo popular. O catolicismo popular, segundo Hoornaert, é aquele oriundo das contribuições indígenas, africanas e de seus descendentes. Em outras palavras, trata-se de uma filosofia vivida pelos pobres em geral, completamente diferente das demais, e que conferiu ao povo um caráter autêntico e de originalidade cultural. Se os principais difusores do catolicismo no interior foram os portugueses povoadores desbravadores do sertão, índios mansos, africanos escravizados e quilombolas, nesse sentido, o catolicismo popular configurou uma espécie de estoicismo, pois aos índios e escravos, as opções somente eram: fugir, se suicidar ou se envolver com a religião. Como os bispos, monges e sacerdotes concentravam-se no litoral, onde havia conventos, seminários, colégios e mosteiros, a doutrina católica no interior do Brasil foi feita pelos leigos: mucamas, caboclos, pretos-velhos, miscigenados e não miscigenados. A esse atenuante, adiciona-se ainda a carência de livros e de universidades, que contribuíram para um cristianismo sem fundamentação bíblica e distante da teologia. (FRANÇA,2017)
Terno de Reis no Vale do Itajaí
Não houve comemorações do Terno de Reis entre 2020 e 2021 - Natal de 2020, por conta da pandemia da Covid 19. Mas, em 22 de janeiro de 2021 houve uma LIVE da Família Dias, grupo familiar, que não é um "terno", como mais alguns grupos contemporâneos não o são. A família Dia representa muito bem esta prática cultural brasileira, na região do Vale do Itajaí. Sua história teve origem, sob os aspectos de tradição e práticas, na cidade catarinense de Tubarão, no início do século XX.
Oliveira Moysés Dias e Damiana Maria Correa.
Tudo iniciou em 1919 com o casal de Tubarão - Oliveira Moysés Dias e sua esposa Damiana Maria Correa, católicos praticantes da comunidade católica e que sempre participaram ativamente da vida religiosa e cultural da comunidade que residiam. Participavam de um grupo de cantos de Tubarão SC.
Em 1945 a família se mudou para Presidente Nereu e em 1956, se mudou para Blumenau, sem no entanto, deixar de praticar a tradição do Terno de Reis. Reuniam-se com os filhos (10 filhos) e vizinhos para cantar o Terno de Reis - usando a viola, o cavaquinho e percussão - herança portuguesa e africana. Também, não visitavam as casas e sim, promoviam uma reuniões com o cancioneiro tradicional do Terno de Reis e do Sertanejo raiz.
Em 16 de novembro de 2019 - Salão Porta Aberta da Catedral São Paulo Apóstolo em Blumenau, Santa Catarina, "Encontro de Terno de Reis - 100 anos da Família Dias cantando Terno de Reis".
Os filhos de Oliveira Moysés Dias e Damiana Maria Correa prosseguiram a tradição. Igualmente se reuniam e também, com amigos, no período entre a véspera de natal e o dia de Reis - em 6 de janeiro. Atualmente o grupo da Família Dias conta com membros participantes, da 4° geração e a tradição continua.
Atualmente, a Família Dias, liderada por um dos filhos mais jovens do casal pioneiro, José Dias e sua esposa Doraci, também conta com os filhos de José e Doraci: Marcos e Beto, os netos Ariel e Darlan e sobrinhos: Lenir e Orivaldo.
Nosso Registro da Família Dia em dezembro de 2011 - Blumenau SC
Como não houve o momento, neste ano de 2020, para comemorar a viagem dos Reis Magos na forma de Terno de Reis, a Família Dias anunciou esta LIVE que acompanhamos e compartilhamos com um pouco desta história e esclarecimentos desta tradição do multicultural Brasil, Estado de Santa Catarina e Blumenau.
Em 2000, a Família Dias fez um trabalho de resgate e registro da cantoria de Terno de Reis, que resultou na gravação do primeiro CD do grupo, o “Anunciando o Natal”. Em 2007, entre as muitas atividades e apresentações, destaca-se a produção do primeiro DVD, gravado no Teatro Carlos Gomes.
Para sua apreciação - Clicar sobre a imagem da Live
Referências:
FRANÇA, Ildimar. Terno de Reis de “ouro Verde”, Abaíra, Chapada Diamantina (BA): um estudo sobre cultura popular. Em Perspectiva Revista discente do PPGH/UFC - Universidade Federal do Ceará - Programa de Pós Graduação em História. Fortaleza, 2017.
GONÇALVES, M.C.S. (2008). Folias de reis: o eco da memória na (re)construção da performance e identidade dos foliões em João Pinheiro, estado de minas gerais. IV Enecult - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (p. 6). Universidade Federal da Bahia. Salvador, Brasil.
PERGO, V. L. Os rituais na folia de reis: uma das festas populares brasileiras. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st1/Pergo,%20Vera%20Lucia.pdf. Acesso em: 23 de janeiro de 2021, 16:20h.
_______. Terno de Reis "Família Dias" celebra 100 anos de cantorias. Jornal do Sudeste. 2019. Disponível em: http://www.jornaldosudoeste.com.br/noticia.php?codigo=205091. Acesso em: 23 de janeiro de 2021, 18:13h.
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