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Será que existe uma "verdadeira forma" de fazer música? Em seu célebre Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen (Ensaio sobre a verdadeira forma de tocar o teclado), lançado em duas partes, em 1753 e 1762, Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788) aspirava estabelecer critérios técnicos e estéticos que trouxessem ordem ao caos de um mundo musical em rápida transformação.
Diversos manuais do gênero surgiram nos anos subsequentes à morte do pai do compositor, Johann Sebastian Bach, em 1750. Entre eles, o de Johann Joachim Quantz, dedicado à flauta transversa, e o influente tratado de violino de Leopold Mozart, pai do grande Wolfgang Amadeus.
Inspirado no livro do segundo filho de Johann Sebastian, cujo tricentenário é celebrado, a atual edição do Bachfest Leipzig tem como slogan "A verdadeira forma". O público da abertura do festival, realizada no dia 13 de junho na Igreja de São Tomás, da qual o "velho" Bach foi diretor musical (kantor) em suas últimas décadas de vida, foi testemunha dessa procura de uma arte "verdadeira".
Duas gerações, dois estilos
Magnificat anima mea Dominum– Minha alma enaltece o Senhor: assim começa o Hino de Louvor a Maria, um dos três cânticos do Evangelho de São Lucas. O texto, pleno de contrastes soberba e humildade, exaltação e rebaixamento, tem inspirado numerosos músicos, ao longo dos séculos.
O organista Ullrich Böhme abriu o concerto com um prelúdio de J.S. Bach elaborado sobre a melodia coral luterana Meine Seele erhebt den Herrn– a versão alemã do Magnificat. Seguiram-se duas obras sobre o texto bíblico, em forma de cantata, da autoria de Bach pai e filho, respectivamente. Ao lado dos solistas vocais e sob a regência de Gotthold Schwarz, o Coro de São Tomás de Leipzig – a "prata da casa" – foi acompanhado pela Tafelmusik Baroque Orchestra.
Sobretudo nos números vocais solo, a comparação direta entre as duas opulentas obras, separadas por duas décadas e meia, ilustra bem a transição das estruturas barrocas em filigrana para a expressividade galante da Empfindsamkeit, o "estilo da "sensibilidade", adotado pelas gerações jovens de compositores na segunda metade do século 18.
Leipzig e os Bach: uma relação conturbada
Segundo certos musicólogos, C.P.E. Bach teria se candidatado com esse Magnificat ao posto de kantorda Igreja de São Tomás em Leipzig, para suceder o pai. Certo está que essa candidatura fracassou, assim como uma tentativa posterior. Mais tarde, o músico encontraria emprego na corte prussiana, e voltaria as costas à cidade.
Os Bach nunca tiveram vida fácil naquela cidade da Saxônia, embora Johann Sebastian tenha passado lá 27 anos de sua vida extremamente produtiva e na qual muitos dos locais onde atuou estão preservados até hoje.
Assim, como uma espécie de compensação póstuma, poucos anos após a reunificação do país, a cidade antes pertencente à República Federal Alemã (RDA) fundou o Festival Bach, com uma notável aura de autenticidade e financiamento generoso. O município contribui com metade do orçamento anual de 2 milhões de euros.
Em vez de J.S., C.P.E.
O discurso de abertura do Bachfest 2014 esteve a cargo de John Elliot Gardiner, um dos pioneiros da interpretação historicamente informada do repertório pré-clássico – a assim chamada Música Antiga. Desde o início do ano, o aclamado regente britânico é presidente do Arquivo Bach local, que também organiza o evento.
"É um momento muito emotivo para mim e um privilégio. Tenho vindo aqui há muitos anos, mesmo antes da reunificação da Alemanha, e sempre acho muito inspirador visitar os prédios históricos e sentir a atmosfera da cidade, da forma como era quando Bach se mudou para cá, em 1723. Ele viu os seus filhos crescerem aqui", comentou Gardiner à DW.
A edição deste ano não homenageia apenas o grande kantor de São Tomás. Como explica o diretor executivo do Arquivo Bach, Dettloff Schwerdtfeger, "quando nós falarmos de 'Bach', nos próximos dias, estaremos nos referindo a Carl Philipp Emanuel, não a Johann Sebastian. Os habitantes de Leipzig vão simplesmente ter que se acostumar com isso."
Embora em vida a fama do Bach mais jovem tenha superado a do pai, sua música foi negligenciada a partir do século 19. Desse modo, há numerosas descobertas para o público, nos mais de cem eventos do festival, de peças solo e de câmara a cantatas sacras e profanas.
Uma série de palestras também enfoca a vida e obra de C.P.E. Bach, compositor que representou um papel central no turbulento período do Sturm und Drang, entre as épocas barroca e clássica.
Artistas e público de todo o mundo
Contudo, seja J.S, seja C.P.E., Leipzig está definitivamente no espírito bachiano, de 13 a 22 de junho de 2014. Cartazes e flâmulas adornam cada esquina, música de todos os tipos soa de diferentes cantos, com músicos de rua competindo com os profissionais. Como em edições anteriores, cerca de metade dos espectadores vem do exterior, um quarto é de moradores da região e o restante vem de outras partes da Alemanha.
O tradicional Coro de São Tomás é o principal pilar da programação, que inclui figuras internacionais da Música Antiga, como os regentes Ton Koopman e Masaaki Suzuki, os solistas Midori Seiler (violino) e Malcolm Bilson (fortepiano), além de conjuntos como a Academy of Ancient Music, de Cambridge, e a Amsterdam Baroque Orchestra & Choir.
Além de lotar igrejas e salas de concerto com admiradores da música erudita, sob a rubrica BACHmosphäre, o festival ocupa as praças da cidade com programas infantis e concertos de jazz e música popular – naturalmente, sempre no espírito bachiano.
Entre as atrações especiais deste ano destacam-se as apresentações, em locais fechados e ao ar livre, da academia orquestral teuto-polonesa b@ch für uns!, formada por músicos em idade escolar da Saxônia e da Cracóvia, na Polônia, que tem como patrono o compositor Krzysztof Penderecki.
- Data 20.06.2014
- Autoria Rick Fulker / Augusto Valente
- Edição Clarissa Neher
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